segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A vida sem patrão

A maioria das pessoas no Brasil já trabalha sem carteira assinada e isso não é sinal de empobrecimento. Muita gente está tentando ganhar a vida por conta própria



Claudio Rossi

A REALIZAÇÃO DE UM SONHO
O casal Mathias e Eliana trocou dez anos de carreira na Rhodia pela construção de uma pousada no interior de Minas Gerais. O negócio deu certo e eles conseguiram manter um padrão de vida muito semelhante ao da época em que trabalhavam como empregados



A lista de sonhos da classe média sofreu uma alteração significativa. Uma das metas favoritas dessa fatia da sociedade sempre foi conseguir um bom emprego numa firma renomada ou numa estatal. Hoje em dia, empregar-se com carteira assinada ainda fascina as pessoas, mas não com igual intensidade. Muita gente descobriu o caminho paralelo de trabalhar por conta própria, vivendo sem patrão. Alguns aprendem isso porque sentiram a oportunidade no ar. Outros só perceberam a possibilidade ao ser despedidos num mercado de trabalho com tendência a encolher. Fato é que, de acordo com os estudos mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quase metade da população urbana do país já trabalha sem assinar carteira ou receber ordenado. Segundo especialistas, pela primeira vez, há mais gente ganhando a vida sem carteira de trabalho do que com ela. "É uma das maiores mudanças já ocorridas na estrutura e na dinâmica da economia brasileira", afirma o ex-ministro da Fazenda Mailson da Nóbrega, sócio da consultoria econômica Tendências.

                                                                                                      Queiroga/Lumiar
JORNADA DUPLA
Na época em que sua franquia de perfumes não lhe dava retorno, a pernambucana Roberta Araújo de Albuquerque trabalhava como caixa de um banco. A dupla jornada acabou quando o negócio engrenou


Em 1992, registrava-se um empate técnico entre o time dos que trabalhavam empregados, com carteira e tudo, e o dos que atuavam por conta própria. Cada um deles contava com cerca de 18 milhões de pessoas. A massa de empregados permaneceu praticamente inalterada até hoje. Mas o exército dos "sem-carteira" cresceu muito e ultrapassou a casa de 23 milhões de pessoas. Como a carteira é uma conquista da era Vargas que indiscutivelmente garantiu direitos básicos ao empregado, trabalhar sem ela era o mesmo que estar subempregado. Afinal, quem vivia sem registro? Entre os milhões nessa situação, costuma-se citar os camelôs, os vendedores de bugigangas em semáforos, as domésticas. Também entram na lista aqueles que fazem bico enquanto aguardam uma oportunidade de emprego. São sempre lembrados ainda os que, mesmo trabalhando numa firma qualquer, ficam sem registro por ganância do patrão, que não quer arcar com custos trabalhistas.
Essa fatia mais humilde da sociedade continua na mesma situação de penúria e gostaria muito de arranjar um bom e seguro emprego regular. A grande novidade no campo do trabalho sem carteira é o ingresso nesse clube de uma fatia expressiva formada por uma mão-de-obra qualificada. São administradores, publicitários, bancários e engenheiros, entre outros profissionais que pagam os impostos em dia (pelo menos a maioria deles, segundo a Receita Federal) e não querem ouvir falar em patrão. Essa gente se divide em três blocos centrais: há os terceirizados, que permanecem vinculados à empresa onde trabalhavam antes, só que na condição de prestadores de serviço; há os consultores, que atuam em diversas companhias; e há os empresários, que montaram um negócio qualquer. Comércio e prestação de serviço são as áreas mais procuradas, com cerca de 35% da preferência. Estima-se que essa fatia mais qualificada entre os 23 milhões de sem-carteira concentre nada menos que 12 milhões de pessoas.

Kiko Ferrite

ENGENHEIROS "INFORMAIS"
O engenheiro Marco e a arquiteta Miriam Addor não trabalham mais com carteira assinada desde que montaram um escritório, em 1995
Claudio Rossi

PEDREIRO REGISTRADO
A exemplo de outros colegas, o pedreiro Brito conseguiu ser registrado por uma construtora e receber alguns benefícios

Historicamente, a remuneração dos sem-carteira situava-se num patamar abaixo do auferido pela fatia empregada da sociedade. No correr das décadas de 80 e 90, esse patamar foi subindo de forma expressiva e deu um salto nos últimos anos. Hoje, um empregado ganha, em média, 560 reais por mês. Já a renda dos "sem-carteira" se aproxima de 800 reais. Enquanto os empregados tiveram um incremento de 17% nos vencimentos, os sem-carteira conseguiram melhorar em 40% seus ganhos. "O Brasil se tornou uma nação de empreendedores, e essa mudança vem se intensificando de forma silenciosa", afirma o cientista político Sérgio Abranches, colunista de VEJA. 

Nélio Rodrigues/Ag. 1° Plano
TENTATIVA FRUSTRADA
Com o dinheiro do Fundo de Garantia, 
a professora mineira Mirna Chipiakoff montou um cafénum bairro elegante de Belo Horizonte. Por falta de movimento, o negócio durouapenas nove meses


Sinais desse Brasil empreendedor podem ser conferidos em toda parte. Um dado objetivo é uma consulta ao Departamento Nacional de Registro do Comércio. De 1985 a 1989, cinco últimos anos da década de 80, foram abertas, em média, 420 000 empresas por ano. Entre 1995 e 1999, essa média saltou para 496 000, um aumento de 18%. São mais de 1 300 negócios surgindo diariamente – quase um por minuto. Há estudos mostrando que a maior parte dos novos empresários era composta de funcionários de uma empresa privada. Em São Paulo, esse número chegou a 59%. Outra indicação do fenômeno empreendedor é um trabalho recente elaborado pelo Babson College e pela London Business School. Os especialistas criaram um ranking com os povos mais empreendedores do planeta. Foram avaliados dados de 21 países. O Brasil ficou em primeiro lugar na lista. Um em cada oito brasileiros adultos monta um negócio próprio. Nos Estados Unidos, segundo colocado, a proporção é de um para dez. Um dos motivos que contribuem para o alto índice de empreendedores no Brasil é a legislação trabalhista rígida, que impede contratações flexíveis. Isso joga muitos candidatos a emprego na faixa dos que precisam se virar sozinhos. Nos Estados Unidos ou na Austrália, um dono de restaurante pode contratar garçons que trabalham apenas nos fins de semana para engrossar o plantel fixo da casa. Uma mulher que precise cuidar de uma pessoa inválida e dos quatro filhos ao mesmo tempo pode ser contratada como secretária de uma firma para trabalhar apenas duas horas por dia, dia sim, dia não. Não importa a combinação, tudo é possível. No Brasil, não. O único modelo aceito é o das oito horas diárias, com um mês de férias, 13° salário, indenização por demissão e todo o resto. Em todo país com legislação trabalhista rígida há mais desemprego.
No Brasil, algumas pessoas abrem uma empresa para melhorar a qualidade de vida. Um modelo imaginado por muitos é o casal Mathias de Abreu Lima Filho, 48 anos, e Eliana Chiocheti, 39. Ambos tinham bons cargos na Rhodia, em São Paulo. Ele era gerente do departamento de pesquisa, ela coordenadora de recursos humanos de uma das unidades da empresa. Depois de dez anos de carreira, os dois se desligaram da empresa e, no ano passado, inauguraram uma charmosa pousada em Monte Verde, no interior de Minas Gerais. Com o rendimento da pousada, sustentam quatro filhos, três deles estudando em escolas particulares. Têm casa própria, pagam plano de saúde e levam uma vida de bom padrão. "Nosso rendimento é ainda um pouco menor comparado ao da época em que éramos empregados da Rhodia", afirma Lima Filho. "A diferença acaba sendo compensada pelo prazer de tocar um projeto pessoal", completa ele.

Raul Junior
Fotos Rogério Voltan
NEGÓCIOS EM CASCATA
Segundo um estudo 
internacional, os brasileiros estão em primeiro lugar no ranking dos povos mais empreendedores. É uma vocação tão forte que o mesmo negócio pode gerar uma série de "filhotes". No mercado da moda, isso ocorre com freqüência. Depois de trabalhar na Forum, do estilista Tufi Duek (1), o assessor Marcelo Sommer (2) montou a própria grife em 1995. Emilene Galende (3), ex-funcionária dessa nova empresa, seguiu o mesmo caminho e hoje também possui uma marca própria. "Já participei até de desfiles importantes", conta ela, orgulhosa



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